Se eu pudesse obrigar você, leitor, a ler um livro neste início de ano, este seria “A Morte de Bunny Munro”. O autor, Nick Cave, músico consagrado, escreveu um dos melhores textos que li sobre a truncada relação pai, filho e avô. Homens incidindo perturbadoramente uns sobre os outros - tema raro na literatura.
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O livro é psicologia pura. Mas não espere você por discursos reflexivos sobre a condição masculina. Nick Cave não é Lia Luft! Trata-se de experimentar uma intensidade. O texto é apressado, triste, desastrado. Não para pra pensar.
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O modo como a ligação afetiva intergeracional atinge os personagens é desconcertantemente bonita e pesada. Dou-me ao sagrado direito à mediocridade que todo blogueiro deve gozar e defendo a idéia de que o tema principal de “A Morte...” seja a repetição. Melhor explicando, a inevitabilidade da repetição de comportamento nas relações familiares. O que comunicamos, desejando ou não, aos ligados a nós pelo sangue.
Bunny Munro, caixeiro viajante, filho de um desonesto vendedor de antiguidades, é obcecado por sexo e álcool. Após o suicídio da esposa, costura o destino do filho - o comovente Bunny Junior, de 9 anos - do único jeito que aprendeu: ensinando a arte da venda ao guri e oferecendo saídas nas mais bonitas mentiras. Eis o aspecto que mais me agrada na história: independentemente das limitações severas de Bunny Munro, ele consegue, em meio ao caos, mostrar ao filho que o mundo é um lugar bom e interessante:
“- A gente vai para casa agora, pai?
- Cruzes, não! – diz Bunny, olhando no espelho retrovisor. – A gente está na estrada!
- O que a gente vai fazer, pai?
- Eu, você e o Darth Vader vamos nos hospedar em um hotel!
Bunny olha novamente o retrovisor – está procurando qualquer indício de polícia, o uivo de uma sirene, luzes azuis piscantes se aproximando dele por trás -, no entanto vê apenas o tráfego noturno se arrastando como um sonâmbulo.(...)
- Sério, pai? – diz ele. – Um hotel?
- Isso mesmo! E sabe o que a gente vai fazer quando chegar lá? – Blocos de luz amarela atravessam o rosto do menino e seus olhos estão esbugalhados e alucinados quando Bunny acrescenta, com a devida reverência:- Vamos pedir serviço de quarto.
- O que é serviço de quarto, pai?
- Pelo amor de Deus, Bunny Boy, você sabe qual é a capital da Mongólia e não sabe o que é serviço de quarto?
Bunny foi banido por tempo indeterminado de três McDonald´s e um Burger King e jogado para fora de um Kentucky Fried da Western Road com tanta força que quebrou duas costelas na queda. E isso no meio da tarde de um sábado agitado. Ele também recebeu quatro ASBOS diferentes na região de Sussex.
- Seviço de quarto é quando você deita na cama no seu quarto de hotel, fecha os olhos e pensa em qualquer coisa que quiser no mundo, qualquer coisa mesmo, aí telefona pra recepção, pede o que escolheu e um sujeito de gravata-borboleta traz pra você.
- Qualquer coisa, pai? – pergunta o menino, girando o Darth Vader na mão e percebendo, ao mesmo tempo, que não precisava ter se preocupado com nada o tempo todo."
As descrições dolorosas nos momentos em que Bunny Munro percebe, verdadeiramente, o que se passa com o filho são comoventes: “Olha para o filho que por algum motivo está com um sorriso perturbado no rosto.” Tão comovente quanto o esforço de Bunny Junior para parecer bem aos olhos do pai, não incomodá-lo com seus medos e necessidades, não fragilizá-lo ainda mais ao decifrar o declínio físico e psicológico do pai. Acompanhá-lo, lealmente, até o dia de sua morte.
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O objeto transicional que mantém Bunny Junior a salvo é uma enciclopédia, presente da mãe, ao qual recorre constantemente para tentar entender o que se passa com o pai e consigo mesmo. A enciclopédia, praticamente um personagem no livro, nomeia as experiências do menino, o organizando internamente:
“O menino estava lendo a enciclopédia à mesa do café da manhã e, além de 'Aparição' e 'Manifestação', ele procurou 'Experiência de quase-morte.'
Enfim, trata-se de um livro nada fácil de digerir. Talvez eu não devesse recomendá-lo. Mas recomendo. Acho o tema brilhante. Além disso, o livro possui um dos parágrafos finais mais perfeitos que já li (em meu ranking particular, perde apenas para o parágrafo final de "Uma criatura dócil", de Dostoiévski).
[Cave, Nick. "A Morte de Bunny Munro". Rio de Janeiro / São Paulo: Ed. Record. 2010.]
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Dedico este texto à minha querida tia que, meio Bunny, resolveu ensinar-me “a Lei da Paciência”. Deixou-me esperando dias a fio por boas notícias do lado de fora. Agradeço profundamente pelo seu afeto, as inúmeras recomendações de livros, as conversas luminosas nos domingos à noite. Jamais esquecerei seu rosto expressivo, seus olhos verdes faiscantes, nossa união de sangue.