
Há menos de um mês, Morrissey, a cabeça genial dos Smiths, esteve em turnê pelo Brasil. Fez um memorável show em São Paulo. Tive o privilédio de ouvi-lo cantar "I know it´s over".
Sendo este blog agonizante temático, ou seja, sobre "cérebro, emoções, comportamentos ", não resisto em retomar os trabalhos indicando aos insistentes e abandonados leitores deste blog moribundo que observem com atenção os versos construídos pelo ex-vocalista dos Smiths.
A canção abre com o comovente verso,
“Oh mother I can feel the soil falling over my head".
O protagonista dirigi-se à mãe, corpo e abrigo de onde viemos. Ventre que nos forjou, de onde saímos e, temos certeza, seremos aceitos se retornarmos, do jeito que retornarmos: mãe é pátria que perdoa e repara. Lembro-me de um professor de literatura que, ao comentar sobre soldados feridos na guerra do Vietnã, observou que estes, quando gritavam por alguém, gritavam, invariavelmente, pela mãe.
Mas Morrissey perverte a função materna. Relega o personagem ao ostracismo do leito vazio e descreve um mundo que procura, o tempo todo, arremessá-lo para fora,
“See the sea wants to take me
The knife wants to slit me
Do you think you can help me?”
Fora do ventre. Fora do mundo também. Ao contrário do que a voz enseja ao dirigir-se à figura materna, não há ajuda; uma sequência de versos crus respondem ao pedido de ajuda,
“If you're so funny, then why are you on your own tonight?
And if you're so clever, then why are you on your own tonight?
If you're so very entertaining, then why are you on your own tonight?
If you're so very good-looking, why do you sleep alone tonight?
I know... Because tonight is just like any other night
That's why you're on your own tonight, with your triumphs and your charms
While they're in each other's arms.”
A mãe que responde, não acolhe, não conforta. Nega completamente sua vocação de ninho. Afirma a indiferença do mundo, grande demais. É implacável ao apostar na incapacidade do filho em relacionar-se e "ganhar o mundo". Trata-se do que em Psicanálise nomeamos como "Superego Punitivo". Muitas vezes somos assolados pelos seus aspectos mais implacáveis. E perdemos o sono, não permitindo que acolhamos aa nós mesmos.
“Love is natural and real, but not for such as you and I, my love.”
Genialmente, a canção aponta para a identificação da figura materna com a incapacidade para o amor, “natural e real” para os outros. Não para ela. Jamais para o filho.
Os versos de Morrissey mostram que é no início do amor, com as figuras de referência que nos acompanham nos primeiros anos de vida, que a ligação com determinado objeto amoroso nos fará perseguir, ao longo da existência, o desejo de restaurar a completude perdida com o nascimento.