
Canções miúdas, encontradas no meio da tarde quase que por acaso, salvam o dia. "Eye of the Needle", do cd "Regeneration", do The Divine Comedy (banda de um homem só, o genial Neil Hannon) é uma delas. A preciosa canção versa sobre o sentimento de inadequação - e consequente solidão - de um sujeito que, aos poucos, se desgarra de sua comunidade religiosa por refletir. Mas que, ainda assim, deseja acima de tudo pertencer.
A canção é comovente, na medida em que o protagonista, em momento algum, desejou não acreditar. Ele participa e conhece seu rebanho. Seu questionamento sobre a fé parece nascer, exatamente, da convivência cotidiana com os outros fiéis e das "respostas" que julga não receber de Deus:
They say that you'll hear him if you're really listening
And pray for that feeling of grace
But that's what I'm doing, why doesn't he answer?
I've prayed 'til I'm blue in the face.
And pray for that feeling of grace
But that's what I'm doing, why doesn't he answer?
I've prayed 'til I'm blue in the face.
A observação da chegada da comunidade nas imediações da igreja reforça a sensação de solidão e dúvida. O desejo de "tocá-los" com o olhar provocativo, que "alfineta" e procura desvendar os mesmos questionamentos que experimenta, o acompanha durante a cerimônia religiosa. Um olho com função tátil, que espeta e acorda. Não será - podemos inferir - vontade de união e identidade com o grupo que percebe, aos poucos e involuntariamente, abandonar? Talvez o desejo de "tocar com os olhos" sua congregação seja a única forma de derrotar o isolamento que vivencia de modo inquietante:
The cars in the churchyard are shiny and German
Distinctly at odds with the theme of the sermon
And during communion I study the people
Threading themselves throughI the eye of the needle
Distinctly at odds with the theme of the sermon
And during communion I study the people
Threading themselves throughI the eye of the needle
...
Mas a parte que me parece mais tocante é quando ele admite o desejo inverso, de ver seu Deus triunfar sobre as dúvidas que o afastam, penosamente, do sentimento de graça que tanto deseja alcançar. Um desejo de sentir o severo e libertador olho de Deus - Cave, Cave, Dominus videt [1] - tomando a congregação. O sinal inequívoco daquele que tudo vê, subjugando as incertezas que fustigam a fé débil que não consegue mais sustentar. Temer a Deus, sem restar dúvidas e, aliviado, reenconhecer-se na congregação. Abdicar do peso que a condição de desgarrado impõe, sendo, simplesmente, mais um:
I know that it's wrong for the faithful to seek it
But sometimes I long for a sign, anything
Something to wake up the whole congregation
And finally make up my mind. [The Divine Comedy, "Eye of the needle", cd "Regeneration"]
But sometimes I long for a sign, anything
Something to wake up the whole congregation
And finally make up my mind. [The Divine Comedy, "Eye of the needle", cd "Regeneration"]
...
Referência à frase de Bosch:
(1) “Cave, cave dominus videt” : a “Mesa dos Pecados Capitais” pintada por Bosch, artista gótico do século XV, conta com essa frase em latim, e quer dizer "Cuidado, Cuidado, deus a tudo vê". Se não me engano, encontra-se exposta no Museu do Prado, em Madri. Se não me engano.