28 de fevereiro de 2010

Depressão: a psicopatologia da lucidez





Há algum tempo, em uma postagem passada, havia prometido um texto sobre Depressão. Mais especificamente sobre a comprovada maior prevalência de casos depressivos em mulheres (numa relação de duas para cada homem e particularmente no período da vida reprodutiva feminina) [1].



Como sou uma "blogueira" muito desobediente, resolvi escrever neste domingo de luz tão branca (o dia me inspirou ao tema) sobre o fenômeno que talvez mais me desconcerte: o discurso depressivo. Ele se caracteriza por uma percepção de mundo cruamente lúcida que o sujeito parece carregar em si. Ao me deparar com pacientes deprimidos (fato muito comum na clínica psicológica e fora dela também), percebo que este olhar independe do grau de gravidade da patologia. Está corriqueiramente presente.



Uma cidade em luz branca, sem contornos, sem sombras, sem ilusão (foi o que pude ver pela janela esta manhã), somada à lembrança de uma canção de Regina Spektor ouvida há poucos dias chamada "Lounge" (procure no cd da cantora entitulado "Songs", cuja capa é a foto que ilustra esse texto) me fez pensar sobre a fala do deprimido na clínica: um discurso de alguém incapaz de se iludir, desconcertantemente lúcido, pouco interessado no mundo.


Em determinado trecho da canção, Spektor diz:


I don't know why flowers grow in wintertime
The sky turns gray, the sun don't shine
And people rush to be
On time for work, they
Wrap themselves in woolen cloaks
And hats and scarves
Like larva in their incubated cars
And drive...until they get away
[2]

A lucidez da descrição de fatos corriqueiros - narrados de modo impiedoso e crú por Spektor - exemplificam o olhar pouco gentil que o deprimido lança sobre o mundo. Um jeito de ver que aponta o tempo todo para a dura constatação de que a vida não é mais do que isto. Freud, em seu brilhante "Luto e Melancolia"[3] questiona porque um estado que percebe a realidade sem ilusões, como ela é, constiui-se como psicopatologia:


"Certamente, de alguma forma ele deve estar com toda razão, e descreve algo que é como lhe parece ser. (...) O paciente também nos parece justificado em fazer outras auto-acusações; apenas, ele dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são melancólicas. Quando, em sua exacerbada auto-crítica, ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie." [3, p.252]


Freud nos faz uma excelente pergunta: por que o estado de lucidez pura -sobre si e sobre todas as coisas - se configura como psicopatologia? Ela não poderia ser libertadora? Minha resposta é controversa: Sim e não.


Sim, nos momentos em que precisamos da decepção e da constatação de irremediável para superarmos determinada situação: o olhar depressivo em períodos de luto é necessário e desejável, apesar de doloroso. A constatação seca da perda definitiva é o único caminho para o desinvestimento egóico. E não, porque esta lucidez não pode permanecer para sempre. Ela deve ser substituída -após determinado tempo - pela retomada da capacidade de nos iludirmos com um novo objeto (alguém, alguma coisa, um novo acontecimento). E é exatamente isso que o sujeito deprimido não consegue fazer: iludir-se com o mundo.


A Depressão como psicopatologia coloca a pessoa que a sofre num permanente e crescente estado de empobrecimento egóico: uma sensação constante de olhar desviado. Eis uma das hipóteses da Psicanálise para o deprimido: uma mãe (ou figura que ocupou o que chamamos de função materna) incapaz de reconhecer os "feitos" do filho. Incapaz de encantar-se e aplaudir genuinamente seus saltos do alto do banco de cinqüenta centímetros da pracinha. Incapaz de julgar ser aquela criança a mais especial do mundo.


Gosto muito das expressões populares, acho que elas revelam uma série de coisas que, mais tarde, os especialistas conseguirão descrever de um modo muito menos gracioso. Mas pensemos na expressão "coruja". O que é ser "coruja", "mãe coruja", "pai coruja", "tia coruja"? Bom, se nos detivermos no animal coruja, visualizaremos grandes olhos atentos e expressivos, ladeados por penas. Sim, ser coruja é deter o olhar, enamoradamente, sobre alguma coisa que chama muito nossa atenção. Que muito nos interessa. A criança de um ano e meio que corre risonha e sem muito comando das pernas pelos corredores dos shoppings e que se vira para trás a procura do olhar coruja dos pais precisa encontrá-lo. Trata-se de uma vivência que significa e estrutura o sujeito. Lacan dizia que ser olhado é ser amado. Portanto, uma hipótese para a Depressão é o que denominamos como olhar desviado, inapreensível, das figuras parentais.


A reedição das primeiras sensações de sermos assistidos (e uso aqui esta palavra em seu sentido pleno) será a condição essencial para mantermos uma relação de calor e parcialidade com o mundo. Imaginarmos que o tênis novo, uma nova viagem, determinado telefonema ou uma canção pode salvar a vida ou mudar o dia é retermos em nós mesmos a potência de vida, ainda que as coisas nem sempre sejam exatamente assim. É absolutamente necessário o claro e o escuro.

[1] "Depressão em Mulheres", Yonkers, K.; Steiner, M. São Paulo: Lemos Editorial.

[2] "Eu não sei por que flores crescem no inverno / o céu fica cinza, o sol não brilha / e pessoas correm para chegar / a tempo no trabalho, eles se agasalham com casacos de lã / e bonés e cachecóis / como larvas incubadas em seus carros / e dirigem antes de se afastarem" Tradução: letras.terra.com.br/regina-spektor/386946/traducao.html

[3] "Luto e Melancolia", Freud, S. Vol. XIV Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago.