19 de setembro de 2009

Breve ensaio de escrita acerca de Lispector


Deixo com vocês o belíssimo texto sobre Clarice Lispector e Psicanálise da psicóloga gaúcha Ana Elisabeth Mautone Gomes. Apreciem!


“Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.” ("Aprendendo a Viver", Clarice Lispector - pg 53)


Ao lermos Clarice Lispector, temos a sensação que a autora revela confissões íntimas, penetrando em áreas sombreadas de sua própria personalidade. Sua narrativa suscita reflexão e mobiliza algo da ordem da angústia em muitos dos que a lêem.Ela vasculha obsessivamente em busca de algo que parece impossível de ser encontrado ou definido. Explora a subjetividade, o fluir da consciência, buscando o âmago das coisas, o devir mais íntimo instalado em nós, fazendo-nos rever nossas certezas em relação a temas complexos como: vida, morte, amor, ódio, solidão, loucura...

Freud, em 1919, publicou um artigo intitulado “O Estranho”.Parto deste escrito para pensar o texto de Clarice. Ao apresentar este artigo, Freud propõe que este termo nos remete a algo assustador, de natureza desconhecida. Diz ele: “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e de há muito familiar” (2006.pg 238). O estranho, para este autor, é aquilo que, de tão familiar, nos causa estranheza.

Clarice convida o leitor para que este se atire e mergulhe nessa atmosfera de estranhamento, desencadeando em quem a lê um processo reflexivo e introspectivo que remete a esta experiência do assustador, do não conhecido, aquilo que é da ordem do recalcado. Ao lermos Clarice temos a impressão que ela faz revelar o estranho que há em cada um de nós.

“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei essa fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.” (pg 52)


Sua escrita introspectiva é marcada por uma busca de si mesmo, na procura de um abrigo que lhe confira uma identidade. A narrativa é assinada pelo sentimento de não pertencer, pela procura do Outro, por algo que lhe sustente e lhe outorgue um lugar.

A imagem assimilada por Clarice de si mesma parece ser de alguém que foi investido pelo desejo do Outro materno com a finalidade específica de propiciar a continuidade da existência desta. Provavelmente seu registro psíquico foi como se sua existência fizesse sentido apenas para aplacar a dor, dar sentido e fornecer esperança ao grande Outro materno, alguém, além de si mesma. Ferida narcísica instalada precocemente em seu psiquismo? Seria apenas está a única representação que Clarice teria no inconsciente materno? Seu sentimento de não pertencimento teria aí sua origem?

Cabassu (1997) acredita que, ao aprofundarmos o entendimento das representações maternas inconscientes e as respostas que o bebê elabora destas, poderemos chegar a um melhor conhecimento das primeiras instaurações psíquicas e do estreito determinismo provindo desta interação. Para a autora, durante o estabelecimento do aparelho psíquico do bebê, é a força do discurso sobre a representação inconsciente que a mãe tem do bebê que pode transformar de maneira significativa a direção dos fatos. De que forma, então, pensar a respeito do complexo “conjunto de sinais da presença materna”? O quanto Clarice foi investida pelo desejo da mãe, por sua voz, olhar, e que sentido foi atribuído ao desejo materno? Como se deu a relação especular?

Será que Clarice se alienou no discurso de vir a ser a salvadora de sua mãe? Seu nascimento teria apenas o sentido de libertar a mãe de todo o mal e da morte? Seu sentimento de ter experimentado ainda no berço “a fome humana” consistiria em sua representação inconsciente de ser desejada apenas com este propósito? Não podemos afirmar e nem fechar tal conclusão. Tais inferências nos remetem apenas a pensar nas representações e fantasias que talvez pudessem habitar o mundo interno de Clarice. Sua escrita nos remete a falta, ao sentimento de incompletude, a um núcleo melancólico que integra a personalidade desta excepcional escritora.

Por outro lado, poderíamos pensar no sucesso alcançado por ela, no reconhecimento de sua obra, nos milhares de admiradores, nas identificações que seus escritos suscitam em quem os lê. De onde viria esta capacidade singular de Clarice? Que grande Outro a atravessou, quem transmitiu e inscreveu em Clarice a possibilidade de ter sido quem foi? Terá sido seu pai que, ao nomeá-la, lhe ofereceu novas possibilidades de vir a ser? Ela traz em seu próprio nome o desígnio de uma grande promessa, seu nome tem origem no latim, que é uma forma elaborada de Clara e que significa “brilhante, ilustre”, o que define todas suas formas de viver: mulher íntegra, corajosa, mãe acolhedora, carinhosa, dedicada. Alguém com quem muitos de nós compartilhamos nossos mais íntimos e miseráveis sentimentos.

Podemos pensar que, como mediador da relação entre mãe e filha, ao se interpor na relação diádica, especular e imaginária da dupla mãe-bebê e ao operar a castração, o pai de Clarice tenha lhe outorgado outro lugar possível de existir e uma suposta renúncia ao desejo materno. Entretanto, não sem deixar vestígios de uma representação imaginária e fantasmática de ter nascido com o único objetivo de salvar sua mãe da morte. Tal evidência aparece a seguir na transcrição do parágrafo a seguir:

“No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me com uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo.” ( Pg-54)

Chama atenção a expressão usada pela escritora, “fui preparada para ser dada”; em seu imaginário ela foi gerada como um presente para a mãe, com a finalidade de restituir a vida desta. Com a morte da mãe, Clarice falha em sua missão salvadora e podemos pensar que se instaura na escritora um núcleo melancólico, um vazio e a busca incessante por aquilo a que foi convocada. Podemos encontrar rastros dessa busca, em seus romances, crônicas e contos. Ela própria se inquietava com seu excesso de sinceridade, dizendo que seus escritos estavam tornando-se excessivamente pessoais.


Calligaris (1991) ao falar do sujeito do inconsciente diz que esse é o lugar de onde o Isso fala - o lugar de onde o sujeito enuncia. O sujeito não fala sozinho, ele está atravessado por outros sujeitos e falando em rede com esses. Para Lacan, o inconsciente é transubjetivo, na medida em que Isso fala, desenha-se uma rede de lugares de interlocução, indicando lugares com os quais o sujeito está falando numa transubjetividade com e em rede com outros sujeitos (também inconscientes). Neste sentido o inconsciente expressa não apenas o sujeito que fala - sua enunciação, mas a marca de subjetividade com a qual ele se estruturou.

Acredita Fink (1998), que quaisquer que sejam os motivos que levam os pais a desejar o nascimento de uma criança, eles funcionam diretamente como a causa da presença física do sujeito no mundo. Diz o autor que estes motivos continuam a agir sobre a criança após seu nascimento e que são responsáveis em grande parte pelo aparecimento do sujeito dentro da linguagem e que, sendo assim, o “sujeito é causado pelo desejo do Outro”. (pág-72)

Aqui fica a tentativa inicial de articular algumas reflexões a respeito do texto de Clarice Lispector com a Psicanálise. As idéias apresentadas aqui pretendem ser um ensaio e exercício de escrita, a partir de reflexões e hipóteses que foram sendo produzidas e pensadas durante a leitura dos textos de Lispector.


¹ EU empregado como Jê referindo-se ao sujeito da enunciação e não a Moi como ego



Referências Bibliográficas

CABASSU, G. (1997). Palavras em torno do berço. In Wanderlei, D.B-Palavras em torno do berço. Editora Àgalma. Salvador.
CALLIGARIS, C. (1991). O inconsciente em Lacan. In: O Inconsciente- Várias Leituras.Ed. Escuta. São Paulo.
FREUD, S. (2006). Obras Completas, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.
LACAN, J. (1998). Escritos. O estádio do espelho como formador da função do eu. Jorge Zahar Editor. RJ.
LISPECTOR, C. (2004). Aprendendo a viver. Editora Rocco. RJ
FINK, B. (1998). O sujeito lacaniano entre o gozo e a linguagem. Jorge Zahar editor.RJ
Ana Elisabeth Mautone Gomes é psicóloga especializanda em Atendimento Clínico com Ênfase em Psicanálise pela UFRGS e técnica responsável pelo Serviço Escola de Psicologia do Centro Universitário Metodista do Sul - IPA. Atende em consultório particular na Av. Érico Veríssimo, nº 627, em Porto Alegre - RS. Fone para contato: (51) 8171-4552

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